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Caderno de Amélia de Valois Gouge

Caderno de Amélia de Valois Gouge

17
Mar25

Almoço de família

Ontem, não houve nenhuma falta no almoço de família em casa dos meus pais. Quando lá chegamos, estava o meu irmão Filipe com a mulher e os dois filhos. Adoro aquelas crianças, especialmente o primeiro, o primeiro é sempre o primeiro, e este foi o primeiro de todos, o primeiro neto, o primeiro sobrinho. Depois, chegou o meu irmão Luís com os seus três filhos e a quarta mulher. A primeira mulher dele não quis ter filhos, então divorciou-se porque queria ser pai. A segunda mulher só quis ter um filho, divorciou-se porque queria ter mais. A terceira mulher quis parar no segundo filho, divorciou-se porque queria ter ainda mais filhos. Pergunto-me se haverá uma relação exponencial entre a duração dos casamentos e a quantidade de filhos que tem em cada um. A quarta mulher está grávida do primeiro filho entre eles, mas já é mãe de uma criança de uma relação anterior. Será que ele considera esta menina para as contas? Nunca vi a criança. Só me apetece dizer-lhe que pare de casar e de ter filhos. O mais inesperado foi ter ficado a saber, pela segunda mulher dele, que andam envolvidos. Fico amiga de todas as suas ex-mulheres, mas há coisas que preferia não saber. Depois, chegou Henrique com a mulher, que enche a casa de alegria com a sua boa disposição, e os dois pares de gémeos. Ela diz ter sido abençoada, tem quatro filhos e só ficou grávida duas vezes.

Por isso, foi uma tarde passada com nove crianças pequenas e os seus nove pulmões repletos de força para as suas bocas que parecem megafones quando estão todas juntas. «Tia, vem brincar connosco às apanhadinhas!», perguntavam-me antigamente. «Isso não», respondia, «mas podemos ler um livro ou fazer um desenho», sugeria. Respondiam-me que não, o que compreendo, nesta idade é mais divertido brincarem às apanhadinhas, mas eu já tenho outra idade, divirto-me com outras coisas. «Chamem o tio Luís que ele adora brincar às apanhadinhas», entregava o assunto.

Há uns meses, comprei uns tampões cuja publicidade enganosa dizia anularem o som. Não anulam, mas reduzem bastante aquela estridência de decibéis demasiado elevados para a saúde de qualquer audição. Então, sempre que vêm ter comigo, aponto para os ouvidos e digo que não ouço nada. «Tira os tampões!», gritam. Faço de conta que não ouço.

Apesar da barulheira, gosto de ser a última pessoa a sair. O meu irmão Luís passou o tarde a dizer que tinha de ir, que tinha de ir, parece que faz um favor com a sua companhia, mas fica ansioso porque tem os filhos que não passarão a semana com ele por distribuir pelas mães. Mas quando sai é logo um alívio, menos três crianças dentro de casa fazem a diferença. Depois, saiu o meu irmão mais novo com os gémeos, e o ar ficou ainda mais leve. Por fim, levei o meu irmão Filipe e a família até ao portão para me despedir deles e voltei para dentro. O N. conversava com os meus pais, esperou que aquela chinfrineira acabasse para pousar o livro que levou e começar a falar. Como o entendo, tinha chegado o momento de sentir o sossego. Coloquei um toro na lareira, aconcheguei uma nova pinha, e fiquei aninhada, à espera que começassem a arder. O meu pai levantou-se e colocou o vinil Kind of Blue a tocar por saber que não me canso de o ouvir. Ainda me continua a mimar e este tipo de mimo vale ouro.

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Amélia de Valois Gouge é um heterónimo da escritora Ana Gil Campos.