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Caderno de Amélia de Valois Gouge

Caderno de Amélia de Valois Gouge

13
Mai25

Idade

A idade está a trazer-me uma serenidade que talvez pareça apatia. O leve sorriso, o caminhar focado na lucidez, a fala precisa. A macia pele das mãos começa a enrodilhar, alguns cabelos brancos reluzem entre os castanhos, os músculos das pernas estão mais delgados, mas a paz que me habita no peito supera a lisura da pele ou o volume do cabelo, como se ganhasse altura, outro tipo de altura.  

12
Mai25

Política

No próximo domingo, teremos de ir votar devido ao ainda primeiro-ministro com apenas um ano de governação. O meu voto está decidido. Ouvi programas de rádio, vi debates televisivos. Não tenho paciência para as análises que se fazem logo a seguir por comentadores que chegam a classificar a participação dos candidatos com números como se de um espetáculo de circo se tratasse. Já se perdeu a seriedade e a relevância dos conteúdos. O que interessa para estas pessoas é a exaltação do discurso, a elevação das vozes, a guerra para haver espetáculo. Para alguns, a guerra é mesmo uma espécie de espetáculo ao qual gostam de assistir como na idade média se assistia à “justa” em que dois cavaleiros armados com lanças montavam a cavalo e corriam um contra o outro. Contraditoriamente, também consideram que os candidatos não devem perder o sorriso e estarem descontraídos. É um público difícil de agradar.

Dentro e fora da política é importante pensar e relembrar o que é a política afinal, para que serve, como deve ser praticada. Muitas pessoas não sabem, mas pensam que sabem ao ponto de a debaterem na televisão, tornam-se grotescos e insensatos nas suas próprias ideias ao pensarem que estão a avaliar as ideias dos políticos.

09
Mai25

Brinco

Perdi um brinco do par dos meus brincos. Recebi-os aos doze anos pelos meus pais e, desde essa altura, são os meus preferidos, os escolhidos quase sempre, pela simplicidade e beleza. Depois de três décadas, perdi um deles. Reparei nisso ontem, em frente à caixa das joias sobre o toucador, quando retirava um anel, o fio do pescoço, um brinco, o outro… O outro brinco não estava. Procurei-o pelo chão, por toda a parte da casa e nada.

Ainda guardo a esperança de que daqui a um mês veja qualquer coisa a brilhar por casa e me pergunte o que será. Nesse momento, ao aproximar-me, encher-me-ei de felicidade por ter encontrado um tesouro pelo significado que tem para mim.

08
Mai25

Natureza

Por vezes, quando levo o lixo aos contentores do fundo da rua, a seguir ao jantar, sou levada pelo início da noite até ao mar. No Norte, as noites são mais agradáveis do que os dias quando o vento nos visita. Durante a noite, o vento adormece cansado certamente, sob os carros estacionados pelas ruas ou recolhido nas sarjetas.

Quase a chegar à praia, a caminho pelos passadiços, agora ornamentados pelas coloridas fores das plantas fruto das dunas, agradeço numa oração que me nasce naquele momento, vinda diretamente do coração. Agradeço a sensibilidade da natureza, a sua grandeza que se manifesta subtilmente, o pôr do sol sobre o mar, o primeiro azul do céu que se vê de manhã, o esvoaçar de pássaros, uma árvore que permanece firme em frente à nossa janela. Sempre que consigo tocar nesta fina sensibilidade da natureza, percebo o que se vem aqui fazer assim que nascemos: vimos agradecer à vida.

07
Mai25

Sobrecarga

Encadernei o meu último trabalho na Staples da Maia. Gosto de lá ir, o espaço é amplo, limpo e sereno. Aconteceu num dia em que inesperadamente caiu granizo, bolas de gelo com um centímetro de diâmetro batiam na claraboia inclinada. A mulher que me atendeu perguntou-me de que cor queria a argola e a folha de trás. Respondi: «tudo branco».

À medida que furava as folhas, ela observava o que os colegas faziam, dois marmanjos que dependiam da ajuda da colega para coisas aparentemente simples. Pousou o meu trabalho para ajudar um deles e voltou ao local onde estava para continuar a furar as folhas. Começou a enrolar a argola, sempre atenta aos colegas, e eles olhavam para ela como se pedissem socorro. Ao mesmo tempo que fazia o seu trabalho orientava o trabalho de outros, se calhar sem qualquer obrigação de o fazer, mas com uma sobrecarga de trabalho, essencialmente mental, que coloca sobre os ombros sem que tenha consciência disso. Pergunto: será que é isto o que a maioria das mulheres faz, sobrecarrega-se de trabalho sem que tenha consciência disso, sem que tenha obrigação de grande parte das tarefas? O stress silencioso que isso provoca e se acumula dia após dia, durante semanas, meses, anos.

06
Mai25

Leitora

Ontem, sozinha e imersa nos livros, chega uma mulher acompanhada pelo livreiro àquele canto da livraria. Logo a seguir chega um homem. O livreiro informou-a de que o livro que lhe pediu está indisponível, ela teve pena mas agradeceu com um sorriso. A mulher falava, provavelmente com o outro homem que ali apareceu, mas depois, ele foi-se embora e ela continuou a falar. Percebi não era comigo que falava também. Aninhada ao nível das prateleiras inferiores, procurava certamente outro livro que ainda não sabia qual. Procurava um livro que a esperava. Continuava a falar com um sorriso, pensava em voz alta, talvez. Sacudiu os sapatos e colocou-se de joelhos. A sola dos pés nus virados para o teto, os sapatos descalçados ao seu lado, ao acaso. À medida que pegava num livro falava, falava e sorria. A mulher falava com os livros.

05
Mai25

Certeza

Ainda a recuperar, mas quase recuperada, de um vírus qualquer cujo nome não conheço. Fiz um teste que tinha em casa para detetar a gripe A, B ou o coronavírus. Deu negativo para todos eles. Durante o tempo de espera do resultado, lembrei-me de um teste de gravidez que fiz quando deveria ter 38 ou 39 anos. Eu e o N. nunca quisemos ser pais, mas chegada à idade que não sendo o limite para muitas pessoas, para mim era, os 40 anos, quis ter a certeza de que não queria ser mãe. Não queria que fosse uma decisão apenas emocional, mas também racional, então refleti sobre o assunto, ponderei todos os aspetos e não houve nada que me fizesse pensar o contrário. Então, questionei o N. que me disse estarmos bem assim, mas que deixava isso ao meu critério, que se quisesse muito seríamos pais. Não foi uma grande ajuda, mas deu-me a resposta mais sensata e generosa, não decidiria por mim nem colocou a nossa relação em causa por isso.

Foi então que houve um mês em que a menstruação não chegava e sentia o peito inchado. Fiquei em pânico e fui à farmácia comprar um teste de gravidez. Depois de o fazer, deitei-me no fundo da cama, às escuras, e pensei: «se estiver grávida faço um aborto, não quero isto para mim». O teste deu negativo e poucos dias depois apareceu-me a menstruação. Mas aquela certeza de que faria um aborto não me saiu do peito durante dias, aquela certeza não saiu de mim até hoje. Tive a convicção de que precisava para uma dúvida que afinal não tinha. Depois disso, as brincadeiras passaram a ter segurança máxima, não queria nem quero voltar a uma situação como aquela.

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Amélia de Valois Gouge é um heterónimo da escritora Ana Gil Campos.