Ontem, sai de casa por voltas das 12 horas para fazer algumas compras, não tinha quase comida em casa, tinha apenas dois iogurtes, três maçãs, duas laranjas, um limão e uma sopa de peixe que tinha feito no dia anterior. No domingo, não tive qualquer vontade de sair de casa, então, empurrei a necessidade de me abastecer para o dia seguinte. Raciocínio que me parece sempre certo por haver menos pessoas a fazer compras durante a semana, especialmente à hora do almoço. Tentei tirar o carro da garagem, mas não consegui, percebi então que não havia eletricidade. Resolvi ir a pé até ao supermercado mais próximo, apesar de não ser do que mais gosto. No caminho, um caminho quente em que parecia estar no pico do verão, o N. telefona-me a avisar sobre o apagão. «Sai de casa para fazeres compras», alertou-me. «Estou a ir agora mesmo, mas apenas porque não tenho quase nada em casa», disse ao mesmo tempo que começava a ver o parque de estacionamento completamente cheio. «Compra tudo o que for preciso, não sabemos quando a eletricidade vai voltar nem qual é a causa do apagão”. «Que exagero!», respondi. Contudo, assim que cheguei à entrada do supermercado não tinha um carrinho nem um cesto de compras disponível, apenas dois carros pequenos de crianças nos quais peguei sem hesitar. De repente, a luz que o gerador estava a conseguir manter foi-se abaixo. Mal se conseguiam ver os produtos, mas fui escolhendo maçãs, cenouras, outro tipo de maçãs, iogurtes para o próprio dia, e quando me pareceu extinta a escolha de alimentos saudáveis que não precisam do frigorífico nem de serem cozinhados, coloquei-me na fila, numa das quatro longas filas que já estavam criadas. Fui observando o que as pessoas levavam, então, achei prudente ter também pão de forma assim como brioches.
À medida que a fila andava, fui escutando coisas como: “ataque informático”, “só pode ter vindo da Rússia”, “foi assim que começou a pandemia, ninguém deu importância no início e depois foi o que foi”, “as farmácias estão fechadas e os outros supermercados próximos também, este é o único aberto e já não deixam entrar mais ninguém”. Então, decidi pegar em quatro pacotes de bolachas Maria que estavam mesmo ao meu lado, mais pão de forma e ainda me lembrei de ir buscar uma bola de queijo. Tentei telefonar aos meus pais e ao N. mas não consegui. Mais à frente, encontrei garrafas de água e já não me lembrava da quantidade que tinha em casa. Peguei em seis garrafas de um litro e meio, nove litros no total, portanto. Chegada a minha vez de pagar, vi-me com três sacos de compras pesados e seis garrafas de água. Cá fora, e perante a impossibilidade de carregar sozinha aquilo tudo para casa, avistei a minha salvadora junto a um carro, Lúcia, empregada de limpeza dos meus vizinhos do lado. Disse que me levava a casa, mas que tinha de esperar pela Augusta, colega na casa a seguir, porque só agora a tinham deixado entrar, estavam a fasear a entrada das pessoas. Questionei-me quanto tempo de espera isso significaria, então, vi uma mulher arrumar um carro de compras e foi assim que fiz algo que nunca me imaginei fazer: coloquei os sacos de compras dentro do carro do supermercado, empurrei-o a custo até casa, estava um sol incomodativo, e, depois de deixar os sacos na frescura da cozinha, regressei mais uma vez ao supermercado a arrastar o carro vazio para o devolver a quem pertence. Enfim, em situações destas tem de se ser prático e foi o que tentei fazer.
A tarde foi passada com a serenidade de sempre, mas dediquei-me em exclusivo à leitura com intervalos para ouvir rádio. Bendita a hora em que há alguns anos decidi tornar-me o mais possível independente das aplicações do smartphone e comprei um rádio que também funciona a pilhas. Por volta das 17 horas, ouvi o portão a bater e imaginei que me estivessem a abalroar a porta já no extremo da calamidade, mas não, era apenas o N. que teve a sensatez de vir ter comigo para me sossegar o coração, imagino que o tenha feito também para acalmar o dele.
Aquecemos a sopa de peixe ligando o micro-ondas ao gerador que tenho na garagem e jantamos entre o ar ameno do jardim. Ouvimos vozes das crianças vizinhas a brincarem no exterior, o cheiro apetitoso de carne grelhada nas brasas, o dia que descia lentamente e se desfazia nas cores vermelha, amarela e violeta. Tive o desejo perverso da Humanidade permanecer assim, sem eletricidade. Os minutos passariam a ser respeitados como tempo, a leitura voltaria a ser aquilo que nos entretém, criaríamos espaço para o nosso próprio interior.
Subimos para o quarto um pouco antes das 21 horas, levei uma pequena vela acesa embora não fosse preciso, a luz natural abundava. Deitados na cama, cada um com o seu livro, com o estore levantado por ser elétrico, tínhamos o pôr do sol ao nível dos olhos, magnífico e irrepetível. Pouco tempo depois, os aparelhos começaram a apitar, tinha voltado a eletricidade, tinha-se acabado a paz universal do silêncio único da existência. Pensei: «para que fui comprar tanto pão de forma quando nem sequer como pão».