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Caderno de Amélia de Valois Gouge

Caderno de Amélia de Valois Gouge

30
Abr25

Paz

Não me procurem para falar mal de alguém, serei uma deceção. Tentarei entender o outro lado assim como o lado de quem se queixa. Se eu disser «realmente» será pura sinceridade, mas não direi mais do que isto. Para alguns isso bastará, por vezes, precisamos apenas de uma confirmação para acalmar os nossos corações, para outros serei “uma seca”, pretenderiam mais, com certeza. Mas também serei honesta e frontal ao falar sobre a verdade dos factos mesmo que não seja do agrado de quem se queixa, não darei palmadinhas nas costas da estupidez. Nestes casos, normalmente quem se queixa vira-se contra mim e eu, que estava sentada na serenidade da minha pose sobre a cadeira, provavelmente com os pensamentos debruçados sobre assuntos que me dizem respeito, sou arrastada para um pedido de alimentação do ódio a alguém. Não quero, obrigada. Não me peçam para odiar alguém porque simplesmente não o farei. Quando tenho algum ódio pessoal, porque também ganho os meus como qualquer ser humano, tento desfazer-me dele, faço por ver a perspetiva do outro, anular o meu ego ao ponto de retirar aquele nó que se criou no meu coração e afastar-me, aceitar e afastar-me de quem me fez ou tentou fazer mal de certa forma. Gosto de viver em paz comigo e com os outros.

29
Abr25

Apagão

Ontem, sai de casa por voltas das 12 horas para fazer algumas compras, não tinha quase comida em casa, tinha apenas dois iogurtes, três maçãs, duas laranjas, um limão e uma sopa de peixe que tinha feito no dia anterior. No domingo, não tive qualquer vontade de sair de casa, então, empurrei a necessidade de me abastecer para o dia seguinte. Raciocínio que me parece sempre certo por haver menos pessoas a fazer compras durante a semana, especialmente à hora do almoço. Tentei tirar o carro da garagem, mas não consegui, percebi então que não havia eletricidade. Resolvi ir a pé até ao supermercado mais próximo, apesar de não ser do que mais gosto. No caminho, um caminho quente em que parecia estar no pico do verão, o N. telefona-me a avisar sobre o apagão. «Sai de casa para fazeres compras», alertou-me. «Estou a ir agora mesmo, mas apenas porque não tenho quase nada em casa», disse ao mesmo tempo que começava a ver o parque de estacionamento completamente cheio. «Compra tudo o que for preciso, não sabemos quando a eletricidade vai voltar nem qual é a causa do apagão”. «Que exagero!», respondi. Contudo, assim que cheguei à entrada do supermercado não tinha um carrinho nem um cesto de compras disponível, apenas dois carros pequenos de crianças nos quais peguei sem hesitar. De repente, a luz que o gerador estava a conseguir manter foi-se abaixo. Mal se conseguiam ver os produtos, mas fui escolhendo maçãs, cenouras, outro tipo de maçãs, iogurtes para o próprio dia, e quando me pareceu extinta a escolha de alimentos saudáveis que não precisam do frigorífico nem de serem cozinhados, coloquei-me na fila, numa das quatro longas filas que já estavam criadas. Fui observando o que as pessoas levavam, então, achei prudente ter também pão de forma assim como brioches.

À medida que a fila andava, fui escutando coisas como: “ataque informático”, “só pode ter vindo da Rússia”, “foi assim que começou a pandemia, ninguém deu importância no início e depois foi o que foi”, “as farmácias estão fechadas e os outros supermercados próximos também, este é o único aberto e já não deixam entrar mais ninguém”. Então, decidi pegar em quatro pacotes de bolachas Maria que estavam mesmo ao meu lado, mais pão de forma e ainda me lembrei de ir buscar uma bola de queijo. Tentei telefonar aos meus pais e ao N. mas não consegui. Mais à frente, encontrei garrafas de água e já não me lembrava da quantidade que tinha em casa. Peguei em seis garrafas de um litro e meio, nove litros no total, portanto. Chegada a minha vez de pagar, vi-me com três sacos de compras pesados e seis garrafas de água. Cá fora, e perante a impossibilidade de carregar sozinha aquilo tudo para casa, avistei a minha salvadora junto a um carro, Lúcia, empregada de limpeza dos meus vizinhos do lado. Disse que me levava a casa, mas que tinha de esperar pela Augusta, colega na casa a seguir, porque só agora a tinham deixado entrar, estavam a fasear a entrada das pessoas. Questionei-me quanto tempo de espera isso significaria, então, vi uma mulher arrumar um carro de compras e foi assim que fiz algo que nunca me imaginei fazer: coloquei os sacos de compras dentro do carro do supermercado, empurrei-o a custo até casa, estava um sol incomodativo, e, depois de deixar os sacos na frescura da cozinha, regressei mais uma vez ao supermercado a arrastar o carro vazio para o devolver a quem pertence. Enfim, em situações destas tem de se ser prático e foi o que tentei fazer.

A tarde foi passada com a serenidade de sempre, mas dediquei-me em exclusivo à leitura com intervalos para ouvir rádio. Bendita a hora em que há alguns anos decidi tornar-me o mais possível independente das aplicações do smartphone e comprei um rádio que também funciona a pilhas. Por volta das 17 horas, ouvi o portão a bater e imaginei que me estivessem a abalroar a porta já no extremo da calamidade, mas não, era apenas o N. que teve a sensatez de vir ter comigo para me sossegar o coração, imagino que o tenha feito também para acalmar o dele.

Aquecemos a sopa de peixe ligando o micro-ondas ao gerador que tenho na garagem e jantamos entre o ar ameno do jardim. Ouvimos vozes das crianças vizinhas a brincarem no exterior, o cheiro apetitoso de carne grelhada nas brasas, o dia que descia lentamente e se desfazia nas cores vermelha, amarela e violeta. Tive o desejo perverso da Humanidade permanecer assim, sem eletricidade. Os minutos passariam a ser respeitados como tempo, a leitura voltaria a ser aquilo que nos entretém, criaríamos espaço para o nosso próprio interior.

Subimos para o quarto um pouco antes das 21 horas, levei uma pequena vela acesa embora não fosse preciso, a luz natural abundava. Deitados na cama, cada um com o seu livro, com o estore levantado por ser elétrico, tínhamos o pôr do sol ao nível dos olhos, magnífico e irrepetível. Pouco tempo depois, os aparelhos começaram a apitar, tinha voltado a eletricidade, tinha-se acabado a paz universal do silêncio único da existência. Pensei: «para que fui comprar tanto pão de forma quando nem sequer como pão».

28
Abr25

Páscoa

 

Este sábado houve uma espécie de segunda Páscoa em casa dos meus pais. Como é difícil juntarem os quatro filhos no domingo de Páscoa, a minha mãe resolve, todos os anos, fazer um sábado de Páscoa no fim de semana a seguir com todos os filhos, netos, noras e famílias das noras, isto é, os respetivos pais, irmãos e cada uma das suas famílias. Não entendo a dedicação do tempo e dinheiro a esta gente toda que, por vezes, me parece desmerecedora e ingrata. A minha mãe responde-me que o faz porque tem uma casa grande como se ter uma casa grande seja uma obrigação moral para o que quer que seja.

Cheguei ao final do dia esgotada. Os risinhos, as provocações aparentemente inocentes, o maneirismo de quem se acha mais do que é, de quem pensa saber mais do que sabe. Não sei como as pessoas se casam quando sabem que ao se casarem não se casam apenas com uma pessoa, mas com uma família inteira. Imagino que tenham o compromisso de se encontrarem pelo menos uma vez por semana, a canseira mental que isso deve ser.

Usei a estratégia mais inteligente, convivi essencialmente com as crianças, a pureza das suas almas ainda é dificilmente corrompida, mas recusei-me a brincar com elas às escondidinhas ou apanhadinhas, há limites. Ofereci a cada uma um livro, o meu presente da Páscoa, açúcar para o cérebro. Apesar de ter vários sobrinhos é uma tarefa que se torna fácil. Como têm mais ou menos a mesma idade, aos meninos ofereci diferentes livros da coleção do Minecraft, e com as meninas fiz o mesmo, ofereci diferentes livros da coleção do Unicórnio. Assim, podem trocar ou emprestar livros entre eles. Ficaram felicíssimas, e assim se vê como estas crianças estão a ser bem criadas, a amarem a leitura.

Pouco depois das 20 horas regressei a casa com o N. e a leve dor de cabeça que senti durante o dia inteiro desvaneceu-se.

24
Abr25

25 de Abril

O Governo adiou ou cancelou — como se quiser denominar — as celebrações relativas ao 25 de Abril justificando o luto nacional pelo Papa Francisco. Por vezes, lembro-me de ser bisneta de um bispo português pelo lado do meu pai e este tipo de situações ainda me parecem mais tristes e mais cómicas, acima de tudo hipócritas e há na hipocrisia a mesma dose de comoção como de comédia.

Tendo sido o Papa Francisco um bom político como a maioria dos políticos portugueses não sabe ser — nem lhe chegam aos calcanhares —, se ainda cá estivesse dir-lhes-ia das boas. É engraçado como um bom Papa pode ser um excelente político e um político que quer tanto prestar homenagem a um Papa falha com os valores da política vigente, a democracia. Um Governo tem de provar merecer o lugar que ocupa, um lugar onde deve honrar e defender a democracia acima de qualquer interesse pessoal, acima de qualquer interesse religioso. Parece-me tudo um circo onde é tudo muito triste e cómico também.

23
Abr25

Dia Mundial do Livro

Nas duas últimas semanas, estive a trabalhar num café em Matosinhos, no Café da Praça. Com obras em casa pareceu-me a melhor decisão. Ocupei a mesa 36 durante algumas tardes e foi lá onde terminei o meu novo romance. Por vezes, durante o exercício de alongar a vista para o exterior, escutava alguém falar sobre séries, umas atrás das outras, mas noutras mesas também de falavam de livros. Os smartphones e as séries vieram tirar espaço e tempo aos livros, tornaram as pessoas preguiçosas ao exercício de pensarem porque as imagens sucedem-se sem fim, engolem quem tem a sua atenção.

Gosto de ver uma boa série no canal que diz ser para um público culto e adulto. O episódio acaba e é necessário esperar pela próxima semana para se ver o seguinte, são sete dias em que o tempo livre pode ser dedicado à leitura, ao luxo de termos o nosso canto dos livros em casa e escolhermos, sermos nós efetivamente a escolhermos em qual livro pegar e vestirmo-nos de ideias e pensamentos. As pessoas andam nuas, não sabem mas não levam nada sobre a pele e a leitura permite que se vistam, com uma roupa melhor ou pior, conforme o que estão a ler, mas não interessa, andam vestidas. As pessoas andam nuas por aí e não sabem como se mostram.

22
Abr25

Carácter

Somos aquilo que fazemos, como o fazemos, como reagimos. Não somos aquilo que dizemos ser, somos aquilo que demonstramos ser através das nossas atitudes. Os outros não são aquilo que dizem ser nem aquilo que os outros nos dizem como são; os outros são os seus comportamentos. O outro não é aquilo que eu desejo que seja, é aquilo que as suas atitudes demonstram. O comportamento de cada um é o reflexo do seu carácter.  

08
Abr25

Fim de obras

Estarei ausente deste lugar onde nos encontramos, regresso no dia 22 de abril. Até lá, espero que a obra no anexo de casa, onde tenho o escritório, acabe. Espero acabar também a correção do livro que escrevi, chegar àquele dia em que não trocarei uma palavra e todas as vírgulas estão no sítio que merecem. Até breve.

07
Abr25

Sono

Fui educada a ter cuidado com o sono dos outros, a respeitá-lo. Na casa dos meus pais, se alguém dormia no quarto, no início da noite, andava-se de meias e em bicos dos pés, falava-se em sussurro, respeitava-se o outro. O sono é sagrado. De manhã, a mesma coisa, se alguém ainda dormia passava-se no corredor em bicos dos pés, não se usavam eletrodomésticos que fizessem barulho, falava-se em tom de voz baixo. É bonito respeitar o sono do outro, é delicioso quando respeitam o nosso, porque o sono é mesmo sagrado.

Claro que o meu irmão Luís fazia exatamente o contrário. Televisão no som habitual quando alguém já dormia, à noite, ou abria e fechava portas sem cuidado, de manhã, como se já estivessem todos acordados. Teve sempre um sono profundo, dificilmente acordava com qualquer coisa, e talvez por isso não entendia isto. Ficava muito ofendido quando era chamado à atenção, não compreendia a enorme falta de respeito que isso representava.

O sono é realmente sagrado, é o tónico para a saúde do corpo e da mente. Para mim, um dia pleno fica entre duas noites bem dormidas e se alguém me fizer um rasgão no sono queixar-me-ei, ficarei zangada e de má cara.

04
Abr25

Dunas

Ontem, iniciei as minhas caminhadas pelo passadiço da praia entre duas margens de dunas. As dunas até agora nuas, desertas de vegetação, estão cobertas de embriões de variadas espécies, plantas minúsculas que emergem do ventre da areia e rastejarão pela superfície à medida do seu crescimento até ao verão. Agora, têm minúsculas flores rosas e amarelas que se destacam entre o raro verde e a superfície de areia. É a primavera a acontecer. No verão, o verde largo predomina na passagem até ao mar, no outono o vento arrasta a areia da praia para cima das dunas e a vegetação começa a ser engolida por ela, aos poucos, até desaparecer no inverno onde as dunas são pequenos desertos à beira mar. É a hibernação das espécies, da fauna e da flora. Apenas o Homem se esquece de o fazer, de se recolher no tempo do frio e dos vírus. Desculpa-se por ser um ser social, desobedece à sua lei natural e, quando a primavera chega, não percebe que ela acontece dentro de si também.

03
Abr25

Sensibilidade

Amanhã, chega o N. de viagem. Falamos todos os dias ao telefone, há dias em que falamos duas ou três vezes. Gosto da procura um do outro para contarmos aquilo que não contamos a mais ninguém, as nossas inquietações e sonhos mais profundos. Isto é o que nos diz gostarmos de alguém, é o que nos diz que alguém gosta de nós, ter vontade de partilhar a língua da alma. Apesar de, por vezes, sentir que me critica.

Ontem, em conversa, surgiu o nome de um primo direito do meu avô paterno, já nem sei como começou o assunto. Este primo foi um grande escritor português, falecido há relativamente pouco tempo, e perguntou-me como nunca li nada dele, apesar da extensa obra, quando leio imensos livros. Fiquei sem resposta, não há realmente explicação. Tendo sido um autor de referência e sendo eu sua prima, não sei porque ainda não o li. Nunca nos chegamos a conhecer, não tive contacto com esse ramo da família, infelizmente. Tenho os seus livros na biblioteca do meu pai, irei lê-lo quando quiser, não gosto que me critiquem. Preferia que o N. me tivesse perguntado: «quando o começares a ler, já sabes por que título vais começar?». Mas se lhe tivesse dito como deveria falar comigo, acusar-me-ia de ser muito sensível, como se a sensibilidade fosse um defeito.

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Amélia de Valois Gouge é um heterónimo da escritora Ana Gil Campos.