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Caderno de Amélia de Valois Gouge

Caderno de Amélia de Valois Gouge

15
Fev25

Regresso

Regressei ao Porto, no sábado. Tive vontade de ficar mais quatro dias. Custou-me a ideia da partida, mas o preço do hotel por noite… É inevitável, tenho de falar com o meu agente imobiliário, o que trata dos alugueres dos apartamentos, para me encontrar um pequeno no centro de Paris. Um que será apenas meu, sem alugueres nem empréstimos. Poder ir e vir sempre que tenho vontade, sem condicionantes, ficar o tempo que entender, um mês se me apetecer, quem sabe mais. Mas não será uma mudança de residência.

O avião, no sábado, pousou sobre o pôr-do-sol vermelho e amarelo, extenso num azul profundo. Quero isto também, quero tudo que me enche a alma.

Agora, bebo café com o olhar posto no jardim da minha casa, sentada no apoio de braço do sofá. Duas alvéolas-brancas procuram bichos para se alimentarem, saltitam de um lado para o outro, levantam da terra larvas e minhocas com o bico que engolem erguendo a cabeça. O musgo miúdo, verde, cobre a terra onde a relva não cresceu e as nuvens desfazem-se no céu, umas brancas, fixas, outras cinzentas, mais próximas, parecem mover-se com pressa, carregadas de chuva, certamente. O mundo sempre em mudança aparente, ciclos da vida, da natureza, do comportamento do Homem.

14
Fev25

Pompidou

Aqui, as manhãs parecem o final do dia em Portugal, durante o inverno. Às 8 horas parece que está a anoitecer, parece que o dia acorda ao contrário. Comi o pequeno-almoço sem pressa, no Novotel Paris, onde tenho ficado, em Belleville. É neste bairro que tenho os dois apartamentos, muito perto deste hotel. Depois do pequeno-almoço, apanhei o metro até ao Centro Pompidou. Está a decorrer a exposição da obra de Suzanne Valadon e perante o quadro “Catherine nue allongée sur une peau de panthère” tive uma inspiração. Se uma obra tem impacto intelectual sobre mim, impele-me a uma ação, que pode ser uma pintura, um texto, um desenho… Neste caso foi uma fotografia: reproduzir o quadro em fotografia. Afastarei a mesa da sala e, sobre o tapete persa, colocarei uma manta antiga que pertencia aos meus avós, que embora não tenha o padrão de uma pantera, há algo nela que faz sentido para a fotografia. Deitar-me-ei nua com o mesmo ar cansado ou desanimado no rosto, de barriga para cima, os joelhos tombados para o lado. Recriarei a mesma natureza morta à minha volta. Tenho um jarro em vidro tal e qual ao da fotografia, o mesmo tom de azul, onde irei colocar quatro cravos vermelhos e pousá-lo junto à minha mão esquerda.

À saída do Pompidou, na loja das recordações, comprei um postal de tamanho médio desta obra. Guardei-a entusiasmada, no meio do caderno, com a ideia de a reproduzir quando chegar a casa.

13
Fev25

Alugueres

Logo de manhã cedo, fui até à empresa imobiliária que trata do aluguer dos dois apartamentos que aqui tenho. Enviam-me todos os meses os recibos por e-mail, mas gosto ter ler os documentos entre as mãos, diante dos meus olhos, por isso, de vez em quando, venho até Paris por este motivo. Não se trata de desconfiar da imobiliária, mas também não considero que tenha confiança absoluta. Estes apartamentos foram herança de uma tia que não teve filhos. Não falávamos com frequência uma com a outra, mas tínhamos a compreensão de cada uma. Ela, também mulher da escrita, sabia que demasiado tempo em conversinhas da treta é tempo que se perde para ler ou escrever. As conversinhas da treta são úteis para a escrita desde de que não excedam dez minutos, parece ser o tempo razoável e, por incrível que possa parecer, estes dez minutos são, muitas vezes, bastante inspiradores.

É com estes alugueres que me mantenho, é assim que mantenho a minha dignidade naquilo que escrevo, sendo fiel ao princípio do que é a verdadeira literatura, sendo fiel àquilo em que acredito.

12
Fev25

Paris

Em Paris. Viveria nesta cidade como se fosse minha. E não é minha? Já não sei de onde sou. O bom de vir ao Café de Flore no mês de fevereiro e durante a semana é sentar-me assim que chego, a ausência de filas criadas por turistas. O porteiro abriu-me a porta e indicou-me a primeira mesa à direita, junto ao vidro, na esplanada interior. Peço apenas um café expresso, acabei de almoçar. O café chega quase logo e reparo numa mulher a três mesas da minha a olhar-me com fixação, de boca aberta. Tem o cabelo castanho, longo e em cachos, usa uma maquilhagem elegante e um casaco de pelo. Deve ter pouco mais de setenta anos. Desvio o olhar, mas inevitavelmente tento reparar se ainda me observa. Continua a olhar e questiono-me se será tolinha. Talvez não, a mulher desvia o olhar também, apesar de continuar a olhar para mim de vez em quando, com a mesma expressão de espanto. Remexe na carteira à procura de alguma coisa.

Telefono à minha mãe do café. «Será alguém da nossa família?», pergunto. «É possível, é possível. Como se chama?», quer saber. «Não falei com ela, mãe! Não, não a acho parecida com ninguém da família», respondo. «Ficou apenas curiosa, certamente», diz-me. Gosto das respostas tranquilizantes e enigmáticas da mãe. “Ficou apenas curiosa”, disse ela, mas com o quê? Esqueço-me da presença daquela mulher e fico a observar quem passa na rua, a sorrir com as respostas que a mãe me dá. Talvez lhe faça perguntas não para compreender o mundo, mas para o aceitar.

Um perfume perfeito surge perto de mim e vejo o bonito casaco de pelo ao meu lado.

— Bonjour, incroyable, n´est-ce pas?

A mulher mostra-me uma fotografia sua de quando era um pouco mais nova do que eu. «Oh là là, c´est moi?», pergunto incrédula. Não saberia dizer se na fotografia sou eu ou se é ela, nem os meus irmãos são tão parecidos comigo. Desta vez, sou eu que fico com a boca aberta de espanto. Pergunto-lhe o nome, digo-lhe o meu, concluímos não haver qualquer relação familiar e desejamos uma vida bonita a cada uma.

09
Fev25

Almoço

Fiz peixe assado, fácil e rápido. Depois do almoço, tomamos café na sala de estar. Adoro a companhia serena dos meus pais, faz-me falta. Mostrei-lhes o jardim e falei-lhes das obras que pretendo fazer. O interior da casa não combina com o jardim descuidado, já pedi orçamento a duas empresas. Partilhei a viagem de amanhã, ainda não lhes tinha dito, por vezes, esqueço-me de falar de mim. A minha gata apareceu, pousou uma das patas na pernas do meu pai que tentou dar-lhe uma festa, mas ela, rebelde, encolheu a cabeça e afastou-se. Veio oferecer apenas um pouco do ar da sua graça. Saíram da minha a casa a meio da tarde, ainda tinham umas compras para fazer. O serão foi passado o N., uma manta sobre as pernas, um filme na televisão, abraçados no sofá. Passou esta noite em minha casa.

07
Fev25

Velasquez

Fui almoçar com o N. ao Café Velasquez. Esta semana apeteceu-me uma coisa diferente, um prego com bolo de caco e uma coca-cola. Não me orgulho desta escolha, mas respeito as minhas vontades. O café estava cheio quando cheguei, como é costume à hora do almoço. O N. esperava-me sentado numa das mesas do meio. Assim que me sentei, chegou a comida. Conhece bem os meus gostos e já tinha feito o pedido. Torci o nariz à água com sabores que pediu, embora seja o que habitualmente costumo beber, mas talvez seja o meu inconsciente a manifestar-se por não gostar que escolham por mim, seja o que for.

Não vi os meus pais nem os meus irmãos. Tive pena de não ter encontrado os meus pais, tenho saudades deles. Mudei-me desta zona da cidade assim que soube que seria tia do meu segundo sobrinho. Quando o meu irmão mais velho teve o primeiro filho, ofereci-me para ficar com ele sempre que precisassem. Santa inocência! Assim foi e foi assim que descobri ser impossível trabalhar com uma criança em casa. O chamar a atenção para brincar, para cuidar, para conversar, para vigiar, torna a existência na própria vida impossível. A mulher dele ficou grávida dois anos depois do nascimento do primeiro filho e foi então que decidi comprar a casa onde estou agora. Uns primos meus queriam vender a casa que herdaram dos pais, mas parecia que não queriam que fosse comprada por nenhum dos irmãos. Coisas da inveja difíceis de entender, afinal, nem todos os irmãos gostam de partilhar. Assim que me propus a comprar a casa pelo preço pretendido, a escritura foi feita passadas duas semanas na condição de que não alterasse a traça interior. Como na minha casa mando eu e a traça interior não era assim tão bonita aos meus olhos, foi completamente remodelada, modernizada. Óbvio que nunca os convidei a visitarem a obra e, depois de terminada, muito menos.

Depois do almoço, despedi-me do N. com aqueles beijos longos de quem parece ter começado o namoro há poucos dias. Vi-o passar de carro ao lado do meu. Antes de sair dali, telefonei aos meus pais para saber se estavam em casa. Tinham saído para uma consulta médica, mas ficou combinado que, no dia seguinte, almoçariam em minha casa.

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Amélia de Valois Gouge é um heterónimo da escritora Ana Gil Campos.