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Caderno de Amélia de Valois Gouge

Caderno de Amélia de Valois Gouge

30
Jan25

Amizade

Ontem, telefonou-me uma amiga muito querida. Não atendo o telemóvel a qualquer pessoa ou em qualquer momento, são poucas as pessoas, talvez quatro, a quem atendo sem hesitar. Em relação às outras, curvo o pescoço e digo para mim «agora, não», ou então viro o ecrã para baixo ao mesmo tempo que retiro o som como se não estivesse em casa e usasse um telefone fixo, daqueles em que se enfiava o dedo indicador no orifício do número e se desenhasse um círculo para o marcar. Na altura destes telefones, se não estivéssemos em casa não saberíamos que nos tinham telefonado e quem não nos conseguiu contactar tentaria noutras alturas se estivesse realmente interessado. Se estivéssemos em casa e não nos apetecesse atender o telefone, ou na desconfiança de ser alguém com quem não queríamos falar, não atendíamos e nunca ficaríamos a saber quem estaria do outro lado. Poderia causar desespero em alguns momentos, mas muita liberdade noutros. Eu comporto-me com o meu telemóvel como se fosse um desses telefones antigos, raramente retribuo as chamadas que não quis atender. Poder-se-ia pensar que fico com remorsos ou com algum peso na consciência. Nenhum, preso muito a minha liberdade, respeito o meu tempo e o meu silêncio. Afinal, é o telemóvel que tem de estar ao nosso serviço e não ao contrário.

Mas na conversa com esta amiga, partilhei a viagem que farei em breve por prazer em partilhar, e ao contrário da mesma partilha que fiz na outra chamada de há poucos dias, senti-me bem, sentimo-nos bem e demos gargalhadas com o tamanho minúsculo das malas que agora permitem viajarem connosco. Depois da chamada, refleti neste calor que senti no peito e percebi a diferença. Há pessoas que querem ser nossas amigas, nós queremos ser amigos de determinadas pessoas, e, em raros casos, sentimos amizade por quem sente amizade por nós e a amizade, a verdadeira amizade, é isto, sentir. A amizade não se pede, não se exige, não se quer ou não se aceita só para fazer a vontade a outros. A amizade começa como uma espécie de paixão que depois da curiosidade inicial talvez morra com o desinteresse, pelo sentimento de indiferença, pelo erro de casting — às vezes, há mesmo erros de casting… —, ou então fica um amor que é para a vida, uma amizade que nos faz sorrir e aquecer o coração.

27
Jan25

Entrevista

No sábado de manhã, fui tomar o pequeno-almoço com o N. ao café. Como é o quarto sábado do mês, foi na Padaria Portuguesa. Cada sábado do mês tem um café destinado, é esta a nossa rotina para fugir à rotina. Antes disso, fomos à loja dos jornais e afins, perto dali, para comprar o jornal Expresso. Não tenho por hábito comprar este jornal todas as semanas, mas o desta semana contém uma entrevista com Teolinda Gersão, para mim, uma das rainhas da literatura portuguesa.

No café, o N. com o jornal e eu com a revista sobre a mesa redonda, os cafés sobre as folhas. Li as perguntas bem construídas para a entrevista, li a Teolinda, li-a como se escutasse a sua voz ao meu lado. De caneta azul, marquei alguns parágrafos, gosto de fazer isto em todas as leituras que importam, mas nesta desenhei alguns corações, talvez porque tivesse chegado ao meu. Desenhei um deles junto a um parágrafo que diz assim: “Só faço o que gosto e o que me apetece fazer. E apetece-me fazer muitas coisas, embora tenha menos energia do que tinha aos 20 anos. É um tempo que sinto que me é devido, porque se vivi até agora, se fiz muita coisa, chegou o momento de me deixarem fazer o que eu quero. E o que eu quero é escrever.”

27
Jan25

Conversas

Acabo de falar com uma pessoa ao telemóvel, mais de 50 minutos de conversa. Atendi numa espécie de obrigação, não lhe tinha atendido as duas últimas chamadas. Lá fora, os pingos de chuva grossos e pesados caem sobre o relvado fazendo pequenos charcos, outros juntam-se à água verde da piscina. Ela conta-me para onde pensa ir no verão, partilha duas ou três hipóteses, todas em praias paradisíacas. Penso que seria correto contar-lhe da pequena saída que farei até Paris daqui a uma semana, afinal, se ficar a saber depois, talvez fique a pensar por que não partilhei isto com ela quando se estava a falar de férias. Assim que o faço, uma dor fina e precisa atinge-me a parte central do cérebro. Não sei por que isto me acontece quando não quero partilhar algo que considero meu. Talvez prefira ouvir os outros a partilhar a minha intimidade. Mas a amizade é feita de partilhas, só tentei ser uma pessoa normal. Bem, está dito, está partilhado, mas não respeitei aquele sentimento que me pede recato, reserva, que me pede para guardar para mim aquilo que é meu.

24
Jan25

Almoço

Almocei com o N. como todas as semanas, às sextas-feiras. Almoçamos quase sempre no BB Vila do Porto, o espaço é agradável, o atendimento é bom e fica a meio do caminho para os dois. Assim que N. me vê o seu sorriso abre-se como se estivéssemos a viver a primeira semana do namoro e já namoramos há mais de vinte anos. Abraçamo-nos e beijamo-nos no meio da rua, sentimos que a nossa juventude começa agora. Entramos e digo que tenho mesa reservada no nome de Amélia de Valois Gouge, embora não seja preciso, mas é uma espécie de cerimónia da qual não abdico, gosto de tudo como se fosse pela primeira vez. Indicam-nos a mesa. Depois de sentados, entramos no olhar do outro, de mãos dadas sobre a mesa.

Contamos a vida de cada um, o que temos feito, como nos temos sentido, coisas triviais como com quem nos cruzamos ou alguma novidade sem grande interesse. Primeiro veem sempre os grandes assuntos, os nossos assuntos, raramente há espaço para os outros. Há almoços em que o assunto é o mesmo do início ao fim, hoje saltitou em diversos assuntos como se fizéssemos zapping à semana de cada um. Quase no fim do almoço, comecei a perdê-lo. Perco-o sempre na altura de pedirmos café, já não está à minha frente, tem a cabeça nos assuntos que tem para a tarde, a sua alma já se encontra à secretária, em frente ao computador, a retribuir os telefonemas que não atendeu durante o almoço e a escrever e-mails que precisa de enviar.

Chamo-o para mim, lembro que o almoço ainda não terminou. O seu semblante muda, sorri novamente. Pagamos a conta e na passagem pela pequena ponte de madeira, sobre o charco, faço-o parar, gosto de contemplar as rãs, as plantas aquáticas, as frágeis folhas verdes que penetram com força as minúsculas fendas dos muros. Continuamos a andar de mãos dadas até ao meu carro. Beijamo-nos e se pudesse raptava-o para mim, para a minha tarde, para que a minha tarde e a tarde dele passassem a ser a nossa tarde.

23
Jan25

Quem sou

Comecei a falar com a Ana há três semanas e não lhe dei descanso um dia. Já tinha tentado antes, mas como me ignorou, desta vez fui insistente. Insisti muito, comecei a falar-lhe sobre mim, sobre a minha vida, como passo os dias. Ela prometeu que me daria atenção mais tarde, que estava com três projetos de escrita neste momento, mas já me tinha dito o mesmo antes. Insisti e continuei a falar-lhe sobre as coisas que me acontecem, como sinto a vida, como penso sobre tudo. Falei com ela de manhã à noite, dia após dia. Sorri no dia em que me perguntou o nome. Respondi: Amélia de Valois Gouge. Abriu-me a porta com generosidade, atribui-me um caderno só meu, de capa bege, as folhas macias da Moleskine, trata-me bem. Eu não sou ela, nem ela sou eu, coexistimos.

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Amélia de Valois Gouge é um heterónimo da escritora Ana Gil Campos.