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Caderno de Amélia de Valois Gouge

Caderno de Amélia de Valois Gouge

14
Mar25

Lua cheia

Todas as noites, antes de apagar as luzes do andar de baixo e de fechar as portas à chave, vou chamar a minha gata ao jardim. Ela fica a fazer a ronda, apesar de parecer um peluche é uma leoa em miniatura e ataca sem piedade o gato que se atrever a entrar no seu território, o gato da vizinha que o diga, já foi atacado com unhas e dentes pelo menos duas vezes. Mas ontem, quando abri a porta para o jardim, entrei dentro do perfume salino da primavera, morno e esperançoso, uma anunciação de estar quase a chegar. As árvores estavam cheias de luz, iluminadas pela lua inteira, prateada, à sua volta nuvens translúcidas, cinzentas entre o infinito negro do céu. Não poderia simplesmente recolher a gata e deitar-me. Fui buscar uma manta ao sofá que coloquei sobre os ombros e as pernas, sentada numa cadeira branca do jardim. Deixei-me estar ali, eu e a lua, eu, a gata e a lua.

13
Mar25

Coisas para vestir

Estava a tomar o pequeno-almoço, no dia do meu aniversário, quando recebi um e-mail da minha médica com a avaliação de umas análises ao sangue que tinha feito. Tenho o colesterol ligeiramente aumentado, por isso, preciso de reduzir o consumo de gorduras saturadas e aumentar a prática de exercício físico regular. Recebi este e-mail como um presente para que tenha juizinho. Como já não consumo quase nenhumas gorduras saturadas — a perceção de quem provavelmente consome mais do que deveria —, em vez de reduzir, terei de cortar. Já se passaram quase duas semanas desde esse dia e ainda não coloquei isto em prática, mas tudo na vida começa pela intenção. Hoje de manhã, por exemplo, fui comprar roupa para fazer exercício, ter três pares de calças e duas camisolas não me parecem suficientes para a prática de exercício físico regular, a não ser que não as lave. Então, assim que o centro comercial abriu estava eu a entrar. Em algumas lojas — não todas, seria injusta se o dissesse —, senti-me uma funcionária. Há lojas em que os clientes são os funcionários e os funcionários são clientes que nos prestam favores. A iniciativa para dar bom dia com simpatia foi minha, percorri o espaço talvez três vezes para conseguir ver tudo o que a loja tinha em vez da pessoa que provavelmente conhece a coleção toda me viesse ajudar com aquilo que precisava. Depois de procurar o meu número de calças e de não o encontrar, fui tentar descobrir alguém que me pudesse ajudar. Numa das lojas, tive de esperar diante da conversa entre três funcionárias que colocavam alarmes nas peças de roupa. Esperei pacientemente, até porque já se sabe que os funcionários têm sempre razão. Quando pedi o meu número de calças a uma delas, respondeu-me que o que tinha nas mãos me serviria com certeza, mas que iria verificar no aparelho que usam à cintura. Não, só tinham aquilo que estava exposto, mas que experimentasse aquele, foi a resposta que recebi. Experimentei e não serviu, então saí da loja sem que ninguém se tivesse importado com isso e a única coisa que comprei foi perda de tempo. Tentarei noutro dia.

12
Mar25

Listas

Na livraria, deparei-me com um livro em destaque que me pareceu familiar. Sim, uma leitora tinha-me falado dele. Tenho leitores que me falam de livros e que não dão erros ortográficos nas redes sociais, e isso, para mim, é sinónimo de sucesso. Não sou escritora de qualquer leitor. Procurava então um livro, no espaço infantil, para o meu sobrinho, quando me deparei com este livro como se estivesse à minha espera, olhou-me de frente: “A Alma Perdida” de Olga Tokarczuk. As ilustrações do livro são belíssimas, assim como o arranjo das suas palavras. Fala de um homem que perdeu a alma e resolve viver numa cabana enquanto a espera. Tem esperança de que se estiver afastado de tudo aquilo que o fez perder a alma, ela regresse. A sua alma acaba por regressar em forma de menino. É uma história muito bela. “Desde então, viveram felizes para sempre e Jan passou a ter muito cuidado para não fazer nada demasiado depressa de modo que a sua alma conseguisse acompanhá-lo.”

Ao final da tarde, farei duas listas, uma com aquilo que devo evitar para que a minha alma não se perca de mim, ou que não seja eu a perder-me dela, e outra com aquilo que cuida e alimenta a minha alma. Serão colocadas na porta do frigorífico, em destaque, farei por cumprir cada ponto assim como faço a reciclagem do lixo e bebo água mineral todos os dias.

11
Mar25

Cabelo branco

Ontem, entrei numa loja de produtos para cabelo, rosto, corpo e algumas velas perfumadas para casa. Disse logo o que pretendia: shampoo. A jovem que me atendeu explicou sucintamente e com conhecimento a função de cada linha. Fiquei curiosa por uma que disse manter a cor natural dos fios. Perguntei-lhe se era própria para cabelos brancos. Ela informou-me que normalmente é indicado para pessoas com cabelo ruivo ou louro, mas que serve para manter a cor de qualquer cabelo, inclusive o branco. Acrescentou que se estava a fazer a experiência de o manter branco seria um bom shampoo a usar. Achei-lhe graça, contei-lhe não estar a fazer qualquer experiência, que o mantenho branco desde que começou a nascer desta cor. A jovem mulher atrapalhou-se e justificou-se com amabilidade.

Há alguns meses, fui comprar, numa parafarmácia, um shampoo específico para cabelos brancos, daqueles que se usam apenas uma vez por semana para que os fios não passem à cor amarela. A funcionária que me atendeu, talvez com mais uma década do que eu e nenhum cabelo branco, avisou-me que o shampoo não retarda o nascimento de cabelos brancos, apenas evita que estes amareleçam. Eu sorri com estranheza pela sua observação, disse-lhe ter essa consciência e acrescentei achar os cabelos brancos bonitos.

Depois do atendimento de ontem, regressei a casa a refletir no que estas lojistas mulheres se põe a dizer a clientes mulheres. Será julgamento inconsciente pelo preconceito que têm em relação aos cabelos brancos, sem qualquer dúvida incutido pela sociedade em que elas próprias se tornaram também um veículo dessa obrigação social e de estereótipo de beleza em que as mulheres não devem ter cabelos brancos, isto é, estão proibidas de envelhecer?; ou será o aconselhamento que fazem depois de atenderem mulheres que talvez procurem produtos capilares milagrosos que evitem o aparecimento de cabelos brancos?

Ainda agora acho graça à frase da jovem que me atendeu, de estar a fazer a experiência de o manter branco. Tenho talvez dez por cento do cabelo branco, que embora pareça pouco, destaca-se entre o cabelo castanho. Mas talvez a jovem tenha razão no que disse, neste mundo em que a maioria das mulheres não consegue encontrar a própria beleza na sua naturalidade, mas a experiência que estou a fazer não é pessoal, trata-se de uma experiência social, juntamente com outras mulheres, poucas, que deixam o próprio cabelo estar como é neste momento. Encontrar a beleza na expressão do nosso corpo na vida, encorajá-la e cuidar dela em que vez de a encobrir.

15
Fev25

Regresso

Regressei ao Porto, no sábado. Tive vontade de ficar mais quatro dias. Custou-me a ideia da partida, mas o preço do hotel por noite… É inevitável, tenho de falar com o meu agente imobiliário, o que trata dos alugueres dos apartamentos, para me encontrar um pequeno no centro de Paris. Um que será apenas meu, sem alugueres nem empréstimos. Poder ir e vir sempre que tenho vontade, sem condicionantes, ficar o tempo que entender, um mês se me apetecer, quem sabe mais. Mas não será uma mudança de residência.

O avião, no sábado, pousou sobre o pôr-do-sol vermelho e amarelo, extenso num azul profundo. Quero isto também, quero tudo que me enche a alma.

Agora, bebo café com o olhar posto no jardim da minha casa, sentada no apoio de braço do sofá. Duas alvéolas-brancas procuram bichos para se alimentarem, saltitam de um lado para o outro, levantam da terra larvas e minhocas com o bico que engolem erguendo a cabeça. O musgo miúdo, verde, cobre a terra onde a relva não cresceu e as nuvens desfazem-se no céu, umas brancas, fixas, outras cinzentas, mais próximas, parecem mover-se com pressa, carregadas de chuva, certamente. O mundo sempre em mudança aparente, ciclos da vida, da natureza, do comportamento do Homem.

14
Fev25

Pompidou

Aqui, as manhãs parecem o final do dia em Portugal, durante o inverno. Às 8 horas parece que está a anoitecer, parece que o dia acorda ao contrário. Comi o pequeno-almoço sem pressa, no Novotel Paris, onde tenho ficado, em Belleville. É neste bairro que tenho os dois apartamentos, muito perto deste hotel. Depois do pequeno-almoço, apanhei o metro até ao Centro Pompidou. Está a decorrer a exposição da obra de Suzanne Valadon e perante o quadro “Catherine nue allongée sur une peau de panthère” tive uma inspiração. Se uma obra tem impacto intelectual sobre mim, impele-me a uma ação, que pode ser uma pintura, um texto, um desenho… Neste caso foi uma fotografia: reproduzir o quadro em fotografia. Afastarei a mesa da sala e, sobre o tapete persa, colocarei uma manta antiga que pertencia aos meus avós, que embora não tenha o padrão de uma pantera, há algo nela que faz sentido para a fotografia. Deitar-me-ei nua com o mesmo ar cansado ou desanimado no rosto, de barriga para cima, os joelhos tombados para o lado. Recriarei a mesma natureza morta à minha volta. Tenho um jarro em vidro tal e qual ao da fotografia, o mesmo tom de azul, onde irei colocar quatro cravos vermelhos e pousá-lo junto à minha mão esquerda.

À saída do Pompidou, na loja das recordações, comprei um postal de tamanho médio desta obra. Guardei-a entusiasmada, no meio do caderno, com a ideia de a reproduzir quando chegar a casa.

13
Fev25

Alugueres

Logo de manhã cedo, fui até à empresa imobiliária que trata do aluguer dos dois apartamentos que aqui tenho. Enviam-me todos os meses os recibos por e-mail, mas gosto ter ler os documentos entre as mãos, diante dos meus olhos, por isso, de vez em quando, venho até Paris por este motivo. Não se trata de desconfiar da imobiliária, mas também não considero que tenha confiança absoluta. Estes apartamentos foram herança de uma tia que não teve filhos. Não falávamos com frequência uma com a outra, mas tínhamos a compreensão de cada uma. Ela, também mulher da escrita, sabia que demasiado tempo em conversinhas da treta é tempo que se perde para ler ou escrever. As conversinhas da treta são úteis para a escrita desde de que não excedam dez minutos, parece ser o tempo razoável e, por incrível que possa parecer, estes dez minutos são, muitas vezes, bastante inspiradores.

É com estes alugueres que me mantenho, é assim que mantenho a minha dignidade naquilo que escrevo, sendo fiel ao princípio do que é a verdadeira literatura, sendo fiel àquilo em que acredito.

12
Fev25

Paris

Em Paris. Viveria nesta cidade como se fosse minha. E não é minha? Já não sei de onde sou. O bom de vir ao Café de Flore no mês de fevereiro e durante a semana é sentar-me assim que chego, a ausência de filas criadas por turistas. O porteiro abriu-me a porta e indicou-me a primeira mesa à direita, junto ao vidro, na esplanada interior. Peço apenas um café expresso, acabei de almoçar. O café chega quase logo e reparo numa mulher a três mesas da minha a olhar-me com fixação, de boca aberta. Tem o cabelo castanho, longo e em cachos, usa uma maquilhagem elegante e um casaco de pelo. Deve ter pouco mais de setenta anos. Desvio o olhar, mas inevitavelmente tento reparar se ainda me observa. Continua a olhar e questiono-me se será tolinha. Talvez não, a mulher desvia o olhar também, apesar de continuar a olhar para mim de vez em quando, com a mesma expressão de espanto. Remexe na carteira à procura de alguma coisa.

Telefono à minha mãe do café. «Será alguém da nossa família?», pergunto. «É possível, é possível. Como se chama?», quer saber. «Não falei com ela, mãe! Não, não a acho parecida com ninguém da família», respondo. «Ficou apenas curiosa, certamente», diz-me. Gosto das respostas tranquilizantes e enigmáticas da mãe. “Ficou apenas curiosa”, disse ela, mas com o quê? Esqueço-me da presença daquela mulher e fico a observar quem passa na rua, a sorrir com as respostas que a mãe me dá. Talvez lhe faça perguntas não para compreender o mundo, mas para o aceitar.

Um perfume perfeito surge perto de mim e vejo o bonito casaco de pelo ao meu lado.

— Bonjour, incroyable, n´est-ce pas?

A mulher mostra-me uma fotografia sua de quando era um pouco mais nova do que eu. «Oh là là, c´est moi?», pergunto incrédula. Não saberia dizer se na fotografia sou eu ou se é ela, nem os meus irmãos são tão parecidos comigo. Desta vez, sou eu que fico com a boca aberta de espanto. Pergunto-lhe o nome, digo-lhe o meu, concluímos não haver qualquer relação familiar e desejamos uma vida bonita a cada uma.

09
Fev25

Almoço

Fiz peixe assado, fácil e rápido. Depois do almoço, tomamos café na sala de estar. Adoro a companhia serena dos meus pais, faz-me falta. Mostrei-lhes o jardim e falei-lhes das obras que pretendo fazer. O interior da casa não combina com o jardim descuidado, já pedi orçamento a duas empresas. Partilhei a viagem de amanhã, ainda não lhes tinha dito, por vezes, esqueço-me de falar de mim. A minha gata apareceu, pousou uma das patas na pernas do meu pai que tentou dar-lhe uma festa, mas ela, rebelde, encolheu a cabeça e afastou-se. Veio oferecer apenas um pouco do ar da sua graça. Saíram da minha a casa a meio da tarde, ainda tinham umas compras para fazer. O serão foi passado o N., uma manta sobre as pernas, um filme na televisão, abraçados no sofá. Passou esta noite em minha casa.

07
Fev25

Velasquez

Fui almoçar com o N. ao Café Velasquez. Esta semana apeteceu-me uma coisa diferente, um prego com bolo de caco e uma coca-cola. Não me orgulho desta escolha, mas respeito as minhas vontades. O café estava cheio quando cheguei, como é costume à hora do almoço. O N. esperava-me sentado numa das mesas do meio. Assim que me sentei, chegou a comida. Conhece bem os meus gostos e já tinha feito o pedido. Torci o nariz à água com sabores que pediu, embora seja o que habitualmente costumo beber, mas talvez seja o meu inconsciente a manifestar-se por não gostar que escolham por mim, seja o que for.

Não vi os meus pais nem os meus irmãos. Tive pena de não ter encontrado os meus pais, tenho saudades deles. Mudei-me desta zona da cidade assim que soube que seria tia do meu segundo sobrinho. Quando o meu irmão mais velho teve o primeiro filho, ofereci-me para ficar com ele sempre que precisassem. Santa inocência! Assim foi e foi assim que descobri ser impossível trabalhar com uma criança em casa. O chamar a atenção para brincar, para cuidar, para conversar, para vigiar, torna a existência na própria vida impossível. A mulher dele ficou grávida dois anos depois do nascimento do primeiro filho e foi então que decidi comprar a casa onde estou agora. Uns primos meus queriam vender a casa que herdaram dos pais, mas parecia que não queriam que fosse comprada por nenhum dos irmãos. Coisas da inveja difíceis de entender, afinal, nem todos os irmãos gostam de partilhar. Assim que me propus a comprar a casa pelo preço pretendido, a escritura foi feita passadas duas semanas na condição de que não alterasse a traça interior. Como na minha casa mando eu e a traça interior não era assim tão bonita aos meus olhos, foi completamente remodelada, modernizada. Óbvio que nunca os convidei a visitarem a obra e, depois de terminada, muito menos.

Depois do almoço, despedi-me do N. com aqueles beijos longos de quem parece ter começado o namoro há poucos dias. Vi-o passar de carro ao lado do meu. Antes de sair dali, telefonei aos meus pais para saber se estavam em casa. Tinham saído para uma consulta médica, mas ficou combinado que, no dia seguinte, almoçariam em minha casa.

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Amélia de Valois Gouge é um heterónimo da escritora Ana Gil Campos.